Loucos
por Cristo
de ENZO BIANCHI
Verão de 1975. Juntamente com um irmão da minha
comunidade decido ir ao encontro de P. Placide Deseille, um monge trapista de
grande elevação espiritual que, desde há alguns anos, fundara uma pequena
comunidade atenta à tradição oriental. Mas, antes mesmo que o conjunto de casas
transformado em Mosteiro, fosse por nós avistado, fomos surpreendidos por um
conjunto de gargalhadas... por momentos temi que tivéssemos seguido o caminho
errado e que tivéssemos chegado a um alegre campo de verão para jovens.
Confesso que entre mim e o humor existiu sempre
alguma estranheza. Talvez porque tenha ficado órfão de mãe muito cedo ou porque
não estou habituado ao facto de o cómico nascer do trágico, o que é certo é que
nunca fui capaz de contar anedotas nem de colher o lado divertido daqueles que,
raramente, o fazem na minha presença. Até os filmes cómicos ou com humor não me
contagiam, apesar das inúmeras tentativas dos meus amigos para os apreciar. Do
meu pai herdei a verve para dar simpáticas alcunhas àqueles com quem tenho
alguma confiança mas não a sua capacidade de despertar, com brincadeiras e
piadas, o quotidiano de uma aldeia perdida no meio do campo... creio não ter
nada de melancólico, triste ou carrancudo, mas, de facto, o "género
literário" humorístico, não é o meu. De resto – dizia para mim mesmo
quando este aspecto do meu carácter me fazia sentir quase culpado – os
Evangelhos falam-nos de um Jesus que chorou, se comoveu, se indignou, mas que
nunca riu ou fez rir: a alegria que infundia em todos os que encontrava não
devia nada ao humor.
É com alguma surpresa que, então, imerso naquele
bosque de França, ouvi gargalhadas de onde esperava que viesse um religioso
silêncio ou até um canto de um qualquer tropário bizantino... que fazer? voltar
para trás? Decidimos continuar e ver a origem daquela alegria que me
incomodava. Para grande surpresa nossa encontrámos o P. Placide rodeado de três
ou quatro companheiros, sentados fora das suas celas: o ancião lia um texto com
um ar, mais ou menos, sério, mas, depois de uma curta frase, os mais jovens
desatavam, de novo, a rir-se. Depois de algumas palavras, de um abraço de boas
vindas e da oferta de um cálice de ouzo com alguns lukumi – os hábitos
orientais eram evidentes – fomos convidados a sentarmo-nos com eles para
retomar a leitura que faziam. Era a Vida de Simeão, o louco, escrita por
Leoncio de Neapoli. Simeão, um monge do século VI, é um dos típicos "louco
por Cristo"; personagens estranhos que, na sua ascese, passavam por
loucos, para desviar de si a fama de santidade ou para reconduzir os cristãos à
"loucura da cruz" (1 Cor 1,18); para serem eco da Palavra de Deus não
com uma linguagem magistral mas com a eficácia de um mimo profético,
desmascarando os defeitos humanos, com ironia em relação a certos comportamentos,
pensamentos e acções que se pretendem sensatos e devotos mas que, na realidade,
são hipócritas e dúbios.
De resto também o Rei David se fingiu louco na
presença de Abimélec: “Eu sou louco no Senhor, que os humildes saibam e se
alegrem” (Sal 34,1-2) e foi desprezado pela mulher Mikal por ter dançado
desenfreadamente diante da arca do Senhor (cf. 2Sam 6,15-16). E António, o pai
de todos os monges, não tinha já profetizado um tempo “em que os homens
enlouquecerão e ao verem um que não seja louco dirão: "Tu és louco! devido
à sua diferença deles"? E o que dizer de um monge erudito e muito refinado
como Bernardo de Claraval que gostava de se definir como um "bobo – o
mesmo termo que se aplicaria a São Francisco – e saltimbanco" e não
hesitava em reconhecer que "a vida [de nós monges] parece aos olhos dos
seculares um jogo, porque fugimos do que eles desejam e desejamos aquilo de que
eles fogem”?
Simeão e outros padres do deserto, cantores como
ele da "sabedoria da cruz", não hesitava em quebrar regras de
conveniência e de pudor e de assumir comportamentos capazes de despertar o riso
mas de, simultaneamente, manifestar o seu amor louco pelo Senhor e de chamar os
homens à conversão. É certo que Simeão passava por louco, cada vez que entrava
na cidade arrastando um cão morto à cintura e depois, na Igreja, atirava nozes
às velas para as apagar. Todos os que o viam a fazer isto chamavam-no louco mas
não deixavam de se interrogar sobre o sentido destes gestos inconcebíveis ou
mesmo blasfemos. Porque é que um homem com fama de santo se põe a saltar e a
dançar com actrizes e participa nos jogos do circo deixando-se tocar por prostitutas,
ou entra nú nos banhos públicos reservados às senhoras? E porque é que cobre de
beijos as portas dos bordéis e cospe nas portas das Igrejas? Deve, porventura,
recordar-se a frase de Jesus que proclama que "os publicanos e as
prostitutas precedem-vos no reino"? Ou quer desmascarar a obscenidade que
nós escondemos por detrás de comportamentos "correctos"? Não serão os
seus gestos provocatórios para nos fazer reflectir sobre a facilidade com que
passamos dos vícios privados às públicas virtudes?
Para Simeão, ridicularizar o mundo era o meio de
ganhar o mundo para o seu Senhor: as suas relações com os mimos – cuja
profissão, como a dos atores, era considerada imoral – e a sua visita a
prostitutas, tinham por objectivo demovê-los daquela forma de ganhar o pão. Ao
mesmo tempo, quem das prostitutas se servia, podia interrogar-se se não era
mais imoral viver no luxo, oprimindo os pobres ou exercendo a violência. Não é
por acaso que os demónios se rebelam contra Simeão, como haviam já feito contra
Jesus: "Oh louco, que rides do mundo inteiro, vieste para nos importunar?
Vai-te daqui, não és dos nossos. Porque nos atormentas?".
Talvez, hoje, não sejamos mais capazes de rir ou
sorrir de gestos loucamente sábios porque quando rimos não queremos pensar, mas
confesso que a lição de humor são, que recebemos naquele dia do P. Placide e
dos seus monges, me serviu - é certo - para não me levar muito a sério, mas
também, para compreender que por detrás de uma gargalhada pode estar a voz do
Senhor chamando à conversão.
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